domingo, 26 de fevereiro de 2012

Entremundos: bosque de símbolos, nevoeiro e aura


Jorge Cabrera
Mestre em Artes 
Escola de Belas Artes. UFMG. Brasil 

Maria do Céu de Oliveira, artista viajante e pesquisadora que percorre mundos palpitantes de imagens, e se apropria delas com seu olhar, com sua câmera, com seus sentidos. Dos lugares por onde ela passa ficam os esboços dos cadernos da artista, os cheiros, os gostos, as cores, os sons, as letras, as pessoas, os sentimentos. Uma vez em seu retorno toda essa poética desdobra-se em justaposições de imagens-colagens que lembram processos criativos como os de Hokusai compondo as Cem vistas do monte Fuji e Proust nas suas composições literárias[1].
As articulações entre as imagens que Do Céu cria adquirem em suas mãos inúmeras possibilidades e sistemas combinatórios. Com esse procedimento não posso deixar de citar aqui Milton José de Almeida, grande e atuante mestre da artista, se referindo aos Tarots criados por ela:
Talvez possa ser revivida a idéia de que embalhando imagens-embaralhando sentidos, embaralhando a História- a ideia de que de uma nova ordem, surgiriam sentidos escondidos tornados visiveis numa nova sequência.[2]
Maria Do Céu Diel embaralha imagens e, nesse movimento, observamos às vezes, que as imagens de outras obras de sua autoria mergulham em outros contextos, em outras obras, em um sistema de apropriação e de “dupla articulação”[3]. Assim, os rostos, os lugares imprimem um ar de mistério ao se debaterem com a têmpera guache, matéria de preferência plástica, segundo a artista, pelas propriedades de sua transparência. Ela a espalha e a raspa criando veladuras ou nevoeiros que ora cobrem suas figuras, ora as revelam. Esses nevoeiros de Do Céu não se limitam apenas ao tratamento plástico. Eles adquirem uma impressão de pele quando faz uso do papel de seda encobrindo as imagens.
Um mito dos índios Nez-Percé e Sahaptin da América do Norte foi analisado por Claude Lévi-Strauss e nele encontramos algumas significações dos nevoeiros para os nativos do lugar. Nas duas versões desse mito, o Gato Selvagem ou o Lince era o senhor do nevoeiro, “criando-o ou dispersando-o a seu bel-prazer”.[4] Segundo Lévi-Strauss, em uma das versões míticas, esta bruma apresentava polaridades. Ela podia ser benéfica ou maléfica, podia representar o gelado ou o quente. Por outro lado, o autor esclarece que o nevoeiro, para os nativos, reúne extremos, desempenhando um papel de intermediário. Pode servir para reuní-los ou para separá-los, dependendo do caso, como por exemplo, unir ou separar o céu e a terra, o alto e o baixo, assim como acontece com os objetos simbólicos, de culto, nos rituais de magia onde eles facilitam o tránsito.
O nevoeiro para os índios da América do Norte ocupa um andar do mundo, acima do nosso, segundo Lévi-Strauss, dentro de uma classificação de quatro andares. O autor afirma que “Todas as crenças parecem dar ao nevoeiro uma conotação positiva. Pode-se cortejar mitos em que o nevoeiro, confundindo o céu e a terra, permite que um determinado protagonista escape de seus perseguidores”.[5] Sendo assim, o mesmo autor assegura que as lendas celtas atribuam ao nevoeiro ambiguidades tais como abrir ou impedir a entrada a um outro mundo.
Podemos então assegurar que os “entremundos” na obra de Do Céu, como nos mitos citados, articulam-se metafóricamente nos nevoeiros das transparências e das veladuras? Essas transparências articulam polaridades ou dualidades? Por outro lado, poderíamos falar de materialidade aurática em função da transparência e da textura do papel de seda?
A aura para George Didi-Huberman refere-se a “uma trama singular de espaço e de tempo (...) um espaçamento tramado” [6] comparável com um sutil tecido, acrescenta o autor, “como um acontecimento único, estranho, que nos cercaria, nos pegaria, nos prenderia em sua rede (...) E acabaria por dar origem (...) a algo como uma metamorfose visual específica que emerge desse tecido mesmo, desse casulo”.[7] O ritual das mãos de Do Céu em encobrir a figura, como parte do processo criativo, poderia ser assossiado a uma forma da artista imprimir suas colagens da aura de que nos falam, na história da arte, Walter Benjamin e Didi-Huberman. Esse ritual se relaciona ao temporal-espacial, com o ato, com a repetição, da qual vai emergindo a “metamorfose visual”, que neste caso constitui o objeto, o objeto aurático.
Por sua vez, Didi-Huberman acrescenta que o objeto aurático está relacionado a uma sequência de imagens que se desencadeia como consequência da mémoire involuntaire[8] quando a obra nos olha e nós a olhamos. Assim, não poderíamos ser omissos sem poetizar diante de uma colagem de Maria Do Céu. É inevitável criar uma rede em torno destes objetos[9] e se perder, parafraseando Didi-Huberman, no “bosque de símbolos” que eles estimulam. Como não relacionar essas colagens com o mundo árabe, com a “estética mestiça[10]” do mudéjar.
A materialidade aurática das colagens de Do Céu se destaca como nevoeiros podendo ser associada ao embrulho da figura, assim como, por outro lado, o “entremundos” em sua obra é também uma mistura de procedimentos e suportes. Suas gravuras em metal utilizam como base de impressão, às vezes, páginas de livros antigos ou outros materiais impressos ultrapassando os suportes convencionais e se entregando ao percurso por outros mundos da técnica.
Para finalizar, desde esta visão panorâmica do “bosque de símbolos” que Maria Do Céu Diel nos eferece nesta exposição, encontramos uma paisagística de uma artista que percorre o desenho, a gravura e a colagem com base na memória, nos esboços de seus papeis de viajante, nas suas junções, nas misturas técnicas e nas lembranças dos cheiros, dos gostos e das histórias de por onde estivera.

Referências Bibliográficas

CABRERA GÓMEZ, Jorge Rafael. O ritual como paradigma no processo e na criação plástica [manuscrito]: um estudo comparativo entre a produção artística de Armando Reverón (Venezuela, 1889-1954) e Arthur Bispo do Rosário (Brasil, 1909-1989). 2011, Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Minas Gerais. 220p
ALMEIDA, Milton José. O Teatro da Memória de Giulio Camillo. Campinas: Editora da Unicamp, 2005. 324p.
ALMEIDA, Milton José. Préface In: DO CEU Diel, Maria. Tarots. Mise en livre par Ana Utsch. Paris, 2008.
GEORGE, Didi-Huberman. A dupla distância. In: DIDI-HUBERMAN, George. O que vemos o que nos olha, 1998.
DO CEU Diel, Maria. Tarots. Mise en livre par Ana Utsch. Paris, 2008.
OLIVEIRA, Maria do Céu Diel. Escritos. Campinas: Império do Livro, 2011.
LEVI-STRAUSS, Claude. História de Lince. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Olhar, escutar, ver. Tradução Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

(Todas as Fotografias de Irwin Oliveira)


[1] Afirma Claude Lévi-Strauss que “(...) como Proust com seus papeizinhos, ele [Hokusai] reutilizou, justapondo-os, os detalhes, os fragmentos de paisagem provavelmente desenhados in loco, anotados em seus carnês, e posteriormente transferidos para a composição”. In LÉVI-STRAUSS, Claude. Olhar, escutar, ler. 1997, p.12.
[2] Préface In DO CEU Diel, Maria. Tarots. Mise en livre par Ana Utsch. Paris, 2008.
[3] Conceito utilizado por Claude Lévi-Strauss tomado da linguística. Em artes plásticas é igual a efeito colagem.
[4] LEVI-STRAUSS, Claude. Historia de Lince, 1993, p. 23
[5] Ibidem, p.22.
[6] George, Didi-Huberman. A dupla distância. In: DIDI-HUBERMAN, George. O que vemos o que nos olha, 1998, p.147.
[7] Ibidem.
[8] Ibidem, p.149.
[9] Falo de objetos lembrando Foucault quando referencia a materialidade dos quadros objetos de Manet.
[10] Termo utilizado pela artista, Do Céu, para se referir a sua pesquisa de imagens no mundo árabe.

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