ENTRE RELEVOS
uma
mediação entre saberes
Lucas Dupin
Ações na arte atual nos surpreendem cada
vez mais nos colocando às margens da “experiência limite”. O poeta Rilke dizia
que os versos não são sentimentos, são experiências. Por sua vez, Blanchot
assegurava que para escrever um único verso é preciso ter visto muitas cidades,
muitos homens e coisas. Trazemos o termo “experiência” no sentido do contato
com o ser, renovação do eu nesse contato e o termo “limite” como risco nas vias
da criação artística. É assim que Lucas Dupin desenvolve em Entre Relevos uma “experiência limite”,
por meio da mediação entre saberes populares, colocando em relevo culturas de
localidades distantes.
Dupin aproxima a experiência das culturas
de duas regiões diferentes: a da xilogravura na cidade de Bezerros, em
Pernambuco, e a dos doces bordados de mamão de Carmo do Rio Claro, em Minas
Gerais. No caso de Bezerros, é a partir da apresentação do próprio doce e de
seus processos, que o artista convida o ato criativo dos xilogravadores. Assim,
desse contato possibilitado pelo artista, foi criado um cordel por J.Borges
sobre a produção dos doces e um conjunto de imagens realizadas por cada um dos
xilogravadores de sua família. Enquanto os Borges de Bezerros gravaram na
madeira imagens de uma cultura até então desconhecida para eles, as doceiras de
Carmo do Rio Claro gravaram na superfície do mamão desenhos de frutas locais,
tomando como referência a série de xilogravuras “frutas do nordeste” de
J.Borges.
O aspecto expressivo de ambos saberes está
no modo de produção de uma imagem em relevo cujas formas estão diretamente
ligadas às ferramentas de trabalho confeccionadas pelos próprios artistas ou
artesãos. Outro ponto em comum é o modo de transmissão deste conhecimento,
quase sempre na escala de ‘um para um’, mantendo certa continuidade na
metodologia de produção destes saberes. Assim, duas culturas que outrora
pareciam distantes são colocadas em contato por Dupin, impulsionado em grande
parte pelo fato de ter crescido em meio à prática dessa técnica peculiar de
preparação de doce e mais tarde à prática da xilogravura.
É notório na arte feita por autodidatas, geralmente chamada de arte popular, trabalhar a partir dos recursos que o entorno oferece: temáticas, histórias, matérias prima, instrumentos e a construção de uma mitopoética. De igual modo, evidencia-se nesta proposta a afinidade entre o Dupin e esse grupo de artistas e artesãs quando observamos seu processo criativo em outros trabalhos. Seja em obras performáticas, de intervenção ou na potencialização de objetos, estão sempre presentes a incorporação do lugar e dos recursos do próprio meio nos quais os trabalhos foram realizados.
A experiência de Lucas Dupin em Entre Relevos passa por um processo de
facilitador de um diálogo, sem a materialização de objetos que caracterizem
propriamente um trabalho autoral. O trabalho do artista está justamente no
processo e na experiência, assim como o arranjo e seus resultados apresentados
no espaço expográfico. Dessa forma ele comenta:
[...]
a minha autoria enquanto artista é
diluída entre o trabalho dos artistas e artesãos, mas retorna ao espaço
expositivo quando busco tornar visível os diferentes diálogos estabelecidos ao
longo desse processo de vivência.
Cabem aqui, com esse apontamento, algumas
quebras de paradigmas tradicionais entre o autor e “sua obra”: “eu é um outro”
(Rimbaud) ou o artista lançado para fora da obra em uma “experiência limite”.
A produção artística de Dupin, no sentido
mais amplo, expressa uma inquietude pela diversidade de expressões, ora objeto,
ora performance, ora intervenção, sendo que, em obras anteriores como Paisagens
Submersas (2007), deSERto (2010), Livro Paisagem (2010), entre outras, há uma
forte recorrência ao texto: suportes, conteúdo linguístico ou imagem e signos
gráficos. Observamos, também, nesses trabalhos ações que remetem à técnica da
gravura: esfolando superfícies, marcando adobes com signos, gravando com fogo a
superfície de livros ou nas xilogravuras. Em Entre Relevos esses signos (texto, gravura) encontram uma
expressividade diferenciada na produção do grupo de artistas e artesãs em
mediação.
Os limites entre a arte
feita por autodidatas e a arte feita por artistas contemporâneos ou eruditos,
no sentido da formação acadêmica, vão se diluindo na medida em que a arte
contemporânea facilita esses diálogos. Conceitos delimitados na historia da
arte são lançados por terra quando nos deparamos em exposições como esta, que
para a arte basta a singela expressão da alma e dos saberes em formas simbólicas.
Jorge Cabrera
Texto de apresentação de Entre Relevos
Exposição do Lucas Dupin.
11-05-2005
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